quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Entre panos e festas: sobre apropriação cultural

Este texto faz parte de um série que estou escrevendo sobre racismo e negritude. Confira os outros textos:
Um negro bonito
Túlio, o negro. Racismo e um pouco de cotas

No início deste ano, resolvi renovar o guarda-roupa. Mudar o meu estilo, me vestir melhor, com personalidade. Sempre busquei vestir coisas que, de certa forma, dissessem algo sobre a minha personalidade ou sobre a minha história. Sempre tive vontade de usar um adorno na cabeça, mas nunca tive coragem por uma série de fatores. Foi quando descobri que os turbantes estavam em alta.


“É a hora”, pensei. Por que não usar um turbante na cabeça? É claro que todo mundo iria ficar me olhando na rua, mas… E daí? Por que não, ao menos uma vez na vida, ser fiel às minhas vontades?

Fui à Uruguaiana em busca de algum tecido com uma estampa legal e que fosse grande o suficiente para enrolar toda a cabeça. Achei uma echarpe preta. “Vai ser isso, por enquanto”. Depois, passei em uma loja de tecidos aqui perto da minha casa. Comprei dois metros de malha. Roxa, claro! Minha cor favorita.


Turbante roxo - um pedaço de malha comprado na Khalil



Nas poucas vezes que usei o turbante (transpiro MUITO na cabeça, logo, não dá para usar no verão, por exemplo), senti que as pessoas me olhavam de forma estranha na rua. Até aí, tudo bem, passei muito por isso sem usar turbante. Mas, com o pano na cabeça, eu me sentia coroado. Para minha surpresa, muitas pessoas vieram me elogiar pelo adorno, ainda que eu fosse o único no estabelecimento a usá-lo.

O que alguns familiares meus diriam se me vissem usando turbante? “Você está ridículo! É o único de turbante aqui”. E minha resposta, claro, seria: “Sou o único negro aqui”. Mas, graças a Deus, não preciso mais perguntá-los o que usar.

Notei que alguns dos nós de pano não eram possíveis de ser feitos em mim. Primeiro, porque raspo a cabeça. Depois, porque a malha não era o tecido adequado. Então, resolvi jogar no Google “turbante”. Entre as dicas de panos para homens, alguns resultados na busca me deixaram intrigados. Algumas blogueiras falavam sobre o uso de turbante e uma tal de “apropriação cultural”. Digo tal porque, até então, nunca havia ouvido falar sobre.

Os textos criticavam as mulheres brancas que usavam turbantes na cabeça. Diziam que, por se tratar de um símbolo da resistência e do orgulho negro, não deveria ser usado por brancos.

Apropriação cultural?
“Apropriação cultural” apareceu outra vez na minha vida em um blog, talvez um Tumblr, que encontrei por acaso. Falava de uma festa que tinha como tema a cultura negra americana: rappers, estilo bandido (thugz, bitches), músicas que ressaltavam crimes e cheias de sexualidade. Até aí, tudo normal para mim, até gosto! Não lembro o nome da festa, mas era alguma expressão em inglês, dessas que aparece nas letras de música de qualquer rapper americano. Nas fotos, jovens vestidos como esses personagens da cultura afro-americana, com bonés de aba reta, joias, tatuagens, etc. Todos brancos. O autor da página criticava tudo isso, chamando, inclusive, a cantora Iggy Azalea de “Rainha da Apropriação Cultural”.

Dentro do contexto, “apropriação cultural” era usada de forma pejorativa, quase como um crime. Mas, antes de formar alguma opinião a respeito, resolvi dar uma breve pesquisada no assunto. Descobri que alguns autores veem o fenômeno como algo positivo, outros, como algo ruim. E, é claro, quem estava criticando a festa e os turbantes dos brancos também não via com bons olhos a “apropriação cultural”.

Por incrível que pareça, já tinha refletido sobre assunto, mesmo sem saber que havia um nome para isso. Quando chegava à universidade às sextas-feiras, sempre havia um grupo de pessoas (umas 20 ou 30) dançando jongo. Para quem não sabe, é uma dança tradicional das comunidades quilombolas e que, dizem, deu origem ao samba. Lembro-me de estar feliz por ver que o jongo (provavelmente dançado pelos meus ancestrais) estava se tornando popular, deixando a marginalidade e indo parar nas universidades. Mas algo ali me incomodava: apenas o homem que estava ao atabaque e, talvez, outras duas ou três pessoas eram negras.

Fiquei dividido. Me sentia feliz pelo fato de o jongo estar deixando a marginalidade. Mas me sentia triste por não ver negros ali no meio. Lembrei-me que estava em uma universidade, onde, infelizmente - mesmo com cotas - é um ambiente frequentado majoritariamente por brancos. Pude concluir que “apropriação cultural” vai muito - MUITO - além de turbantes ou “black parties”. Ela representa uma realidade que vai muito além da segregação racial: passa pela massificação da cultural, pelas desigualdades econômicas e sociais… Faz parte de todo um sistema de significados e relações intra e interpessoais. E, justamente por isso, não possui apenas um aspecto.

Particularmente, acho que cada um se veste como quer, e que o uso ou não de um turbante não vai tornar um branco mais negro, nem um negro mais branco. Além do mais, não que seja relevante para este assunto, o turbante não é, nem nunca foi, exclusividade da África: usa-se no Oriente Médio, no Sul da Ásia, e até na Oceania. Se a desigualdade entre as etnias fosse medida pela roupa, estaríamos feitos. Particularmente, acho que não é motivo para se preocupar. Sobre a festa, acho a mesma coisa, porém, com um adendo: Não existe uma África - ao contrário do que o colonizador quis que os negros africanos pensassem. Não existe A Cultura Negra porque não existe uma (1) cultura negra. Há várias delas! A cultura negra do Brasil - que é formada por uma pluralidade de culturas - não é a mesma daquela dos Estados Unidos. Não somos mais dignos de nos vestirmos como rappers só por sermos negros. Fora que, fagocitada pela mídia de massa, esse estilo nos foi jogado aqui no Brasil e consumimos sem, sequer, saber do que se trata. Não que isso seja relevante, mas, para defendermos esse ponto, precisamos, ao menos, ser honestos.

Carimbó?
Confesso que, recentemente,  tenho sentido o que é, de fato, “apropriação cultural”. Estive em algumas festas com temas que me pareciam interessantes: clima tropical, oriente médio, etc. Curiosamente, elas são frequentadas pelas mesmas pessoas que, quando eu estava na primeira faculdade, achavam um máximo ir para Casa da Matriz e escutar indie rock. Para minha surpresa essas pessoas (antes roqueiros, agora, “tropicaleiros”; antes indies, agora hipsters) estavam diferentes. Não umas das outras, mas em relação ao que eram antes. Os homens, brancos, todos de barba, quase que como um pré-requisito para estar ali. As meninas, com roupas variadas, coloridas, óculos escuros (à noite).

A festa era, quase toda, embalada por carimbó. Não que ache isso um problema, mas achei estranho o fato de um ritmo tradicional do folclore do norte do Brasil ter virado “moda” aqui. Todos dançavam alegres, mas de forma bem diferente do que se vê no carimbó. Os DJs também tocam tecno-brega e até axé antigo (de Margarteh Menezes a Banda Reflexu’s).

Me pergunto até que ponto esta festa representa um sucesso desses ritmos ou um negócio rentável, movido por jovens endinheirados, em busca de uma personalidade própria que, de tanto se esforçarem para ser diferentes, acabaram todos iguais. A rentabilidade é óbvia: estas festas ocorrem em locais geralmente improvisados, de baixo custo de aluguel. O custo com DJ é baixo, já que não existe um nome forte em carimbó (?????) e axé music por essas bandas. Oferece-se apenas estilo (?????) e a oportunidade de ser único. Os serviços não são dos melhores, o preço da bebida está na média do encontrado em outras festas… Imagino quanto se lucra com um evento desses.

Finalizo com uma cena desta festa: o DJ colocou Ilê Pérola Negra, da Daniela Mercury. Todos dançaram muito. A pérola negra, no final, era eu: o único negro que ali estava.

Um comentário:

  1. Tulio, gostei muito do seu texto! Primeiro pela organização de sua escrita, aliás você sempre escreveu bem. Segundo por partilhar seus pensamentos e sentimentos a respeito da sua gente. Somos formados por "várias gentes" dentro de nós, mas sempre nos escondemos em uma. Você não! Ter orgulho de quem se é, é muito importante para descobrir o seu papel dentro desse mundo tão mascarado em que vivemos. Não devíamos olhar o outro pela cor que possui e sim pela cor que expressa em suas atitudes e escolhas. Ainda está longe de vermos isso, mas são atos como o seu que tiram mais uma pedra de nosso caminho para que possamos seguir em frente. Parabéns! Bjs saudosos

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