Fui estudante de um
antigo e tradicional colégio do Rio de Janeiro. Os uniformes não
eram dos mais bonitos, não dava muita brecha para a vaidade dos
alunos. Patrícia (nome fictício) ingressou na escola já causando
frisson por onde passava: tinha lindos cabelos loiros e anelados e
olhos azuis, além de já ter o corpo bem formado em relação a
maioria das garotas. Era muito bonita e sabia disso, logo não dava
atenção a qualquer pessoa – talvez uma forma de autopreservação.
Isso, é claro, atraiu a inveja das meninas e o recalque dos meninos.
Aos 17 anos, ela fazia o
que as adolescentes da idade faziam: trocava bilhetes, ficava com
garotos – que escolhia a dedo –, frequentava festas, etc. Tudo
normal até o dia em que uma carta em que ela descrevia os detalhes
de uma “ficada”, direcionada a uma amiga, caiu nas mãos erradas.
Em menos de uma semana, o texto foi copiado, digitalizado, divulgado
na internet e fixado em vários murais da escola. Patrícia, antes
bonita e desejada, ganhou um apelido nada agradável e passou a ser
chamada puta e piranha (na época, o termo “periguete” não era
tão usado). Antes da carta, os garotos queriam ficar com ela e
exibi-la como troféu. Depois, ainda queriam ficar com ela, mas para
que ela fizesse com eles o que ela dizia na carta – e ninguém
poderia ficar sabendo.
Quando eu já estava na
faculdade, um caso semelhante ocorreu na mesma instituição: uma
menina da 7ª série (atual 8º ano) foi vista praticando sexo oral
em um garoto da mesma série. O curioso é que a testemunha do fato
foi um monitor adulto e graduado. No entanto, dias depois, o colégio
inteiro sabia da história. Ela se desligou da escola, o garoto ficou
por um ano ou mais.
Acompanhei de perto o
caso de Patrícia. Era minha amiga, divertida e irônica, gostava de
ser o centro das atenções. Adorava rosa e usar botas. Já confessou
que me achava bonitinho, o que, vindo dela, elevou consideravelmente
a minha autoestima. Eu bem que tentei interferir, fazer algo quanto o
que aconteceu, mas não era possível. Como bom adolescente com merda
na cabeça, inventei uma história diferente de quem eu via
com a carta dela em mãos. Muitos nem precisei inventar, já tinha
bastante material verídico e factual em mãos. Meus amigos, quando
falavam dela, eram logo interrompidos por mim.
No segundo caso, optei
por não dar um nome fictício pois não tive contato direto com a
situação. Como tenho parentes que trabalham nessa escola, eles me
contaram os acontecimentos sobre essa que chamarei X..
Nos anos 2000, ter uma
webcam ou um celular com câmera era muita riqueza. Não era fácil
constranger as pessoas com imagens, só com boatos – muitos
inventados – ou com evidências como a própria carta da Patrícia,
bilhetes trocados em sala de aula e até o uso de absorvente interno
(meninas que usavam O.B. não eram mais virgens, logo, eram
piranhas). As circunstâncias de Patrícia e de X. não eram as
mesmas que de Fran, Júlia Rebeca e Giana Laura, que foram filmadas
enquanto faziam sexo. Júlia e Giana, envergonhadas com a exposição,
cometeram suicídio. Fran evita sair de casa e mudou o visual.
Patrícia e X. saíram da escola no mesmo ano.
Se eu disser que sou
santo, que nunca “repliquei” uma fofoca durante a adolescência,
vou mentir, afinal, como já falei, eu tinha merda na cabeça. Mas o
que me assusta são os comentários que ouvi a respeito dos casos. No
caso dos vídeos, elas eram “piranhas”, “deviam se preservar”,
“não deixar serem filmadas”, “assumir as consequências dos
atos”, etc. Cada comentário mais estúpido e hipócrita que o
outro. É muito fácil dizer isso quando se é homem e se vive em uma
sociedade falocêntrica. O garoto que ficou com Patrícia, que já
tinha fama de gostosão, passou a ser O Pica das Galáxias. Ela, a
meretriz.
As mulheres lutaram tanto
para terem os mesmos direitos que os homens e, ao reproduzirem esses
discursos, voltam ao paleolítico. Como assim ela deveria assumir as
consequências dos próprios atos? Quem, aos deze-poucos anos, assume
consequência de alguma coisa (até a maioridade penal é 18 anos)?
Adolescentes erram, e é para isso que serve a adolescência. O erro,
no entanto, não está na Patrícia, que registrou em papel o que
tinha feito, não está na Giana ou na Júlia, que se deixaram
filmar. Está em quem expôs.
Não satisfeito em
assistir os vídeos, o público (homens e mulheres) ainda deixa
comentários, para fazê-las – elas, as meninas, que sempre acabam
como as vítimas – se sentirem piores. Elas são as piranhas, as
periguetes, tiveram pais que não deram educação... Eles, os que
filmaram e divulgaram, passam despercebidos. É como se cada um
desses casos fosse uma releitura do pecado original: Adão só comeu
a maçã porque Eva ofereceu.
Tem algo de errado nessa
sociedade. Fazer sexo é antigo. Registrar, em papel ou em vídeo,
também. Infelizmente, nem todo mundo respeita a privacidade e deixa
entre quatro paredes o que ali foi feito. É preciso divulgar,
mostrar o que a mulher fez de errado e o que o homem fez de certo.
Denise Rocha, ex-assessora parlamentar, virou o Furacão da CPI
depois de ter um vídeo de sexo publicado na web. Atores globais,
ex-BBBs e até atletas têm vídeos aí, rolando na web, para quem
quiser ver. Ninguém criticou – aliás, só elogios.
Não, não estou aqui
sendo femininista ou criticando o machismo. Só mostrando as medidas
que são dadas a pesos diferentes. Estou aqui por menos hipocrisia:
pelas vezes que ouvi meninas da minha escola, que eu sabia que faziam
coisas semelhantes ou “mais profundas”, rindo de Patrícia; pelos
caras que a apelidaram, mas fariam qualquer coisa para transar com
ela. Pela incompetência do adulto que expôs a X.. Por quem, ao
criticar e ofender adolescentes, as deixaram vulneráveis e
infelizes, ao ponto de se matarem.
Menos, meu povo, menos.
Cada um sabe onde seu calo aperta e o melhor jeito de gozar. Criticar
e rir da desgraça e do gozo alheios não expia nossos pecados nem atenua nossos
problemas. Só nos torna cada vez mais hipócritas.
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