quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Cartas, vídeos e hipocrisia: as Gianas e Júlias de cada dia

Fui estudante de um antigo e tradicional colégio do Rio de Janeiro. Os uniformes não eram dos mais bonitos, não dava muita brecha para a vaidade dos alunos. Patrícia (nome fictício) ingressou na escola já causando frisson por onde passava: tinha lindos cabelos loiros e anelados e olhos azuis, além de já ter o corpo bem formado em relação a maioria das garotas. Era muito bonita e sabia disso, logo não dava atenção a qualquer pessoa – talvez uma forma de autopreservação. Isso, é claro, atraiu a inveja das meninas e o recalque dos meninos.




Aos 17 anos, ela fazia o que as adolescentes da idade faziam: trocava bilhetes, ficava com garotos – que escolhia a dedo –, frequentava festas, etc. Tudo normal até o dia em que uma carta em que ela descrevia os detalhes de uma “ficada”, direcionada a uma amiga, caiu nas mãos erradas. Em menos de uma semana, o texto foi copiado, digitalizado, divulgado na internet e fixado em vários murais da escola. Patrícia, antes bonita e desejada, ganhou um apelido nada agradável e passou a ser chamada puta e piranha (na época, o termo “periguete” não era tão usado). Antes da carta, os garotos queriam ficar com ela e exibi-la como troféu. Depois, ainda queriam ficar com ela, mas para que ela fizesse com eles o que ela dizia na carta – e ninguém poderia ficar sabendo.



Quando eu já estava na faculdade, um caso semelhante ocorreu na mesma instituição: uma menina da 7ª série (atual 8º ano) foi vista praticando sexo oral em um garoto da mesma série. O curioso é que a testemunha do fato foi um monitor adulto e graduado. No entanto, dias depois, o colégio inteiro sabia da história. Ela se desligou da escola, o garoto ficou por um ano ou mais.



Acompanhei de perto o caso de Patrícia. Era minha amiga, divertida e irônica, gostava de ser o centro das atenções. Adorava rosa e usar botas. Já confessou que me achava bonitinho, o que, vindo dela, elevou consideravelmente a minha autoestima. Eu bem que tentei interferir, fazer algo quanto o que aconteceu, mas não era possível. Como bom adolescente com merda na cabeça, inventei uma história diferente de quem eu via com a carta dela em mãos. Muitos nem precisei inventar, já tinha bastante material verídico e factual em mãos. Meus amigos, quando falavam dela, eram logo interrompidos por mim.



No segundo caso, optei por não dar um nome fictício pois não tive contato direto com a situação. Como tenho parentes que trabalham nessa escola, eles me contaram os acontecimentos sobre essa que chamarei X..



Nos anos 2000, ter uma webcam ou um celular com câmera era muita riqueza. Não era fácil constranger as pessoas com imagens, só com boatos – muitos inventados – ou com evidências como a própria carta da Patrícia, bilhetes trocados em sala de aula e até o uso de absorvente interno (meninas que usavam O.B. não eram mais virgens, logo, eram piranhas). As circunstâncias de Patrícia e de X. não eram as mesmas que de Fran, Júlia Rebeca e Giana Laura, que foram filmadas enquanto faziam sexo. Júlia e Giana, envergonhadas com a exposição, cometeram suicídio. Fran evita sair de casa e mudou o visual. Patrícia e X. saíram da escola no mesmo ano.



Se eu disser que sou santo, que nunca “repliquei” uma fofoca durante a adolescência, vou mentir, afinal, como já falei, eu tinha merda na cabeça. Mas o que me assusta são os comentários que ouvi a respeito dos casos. No caso dos vídeos, elas eram “piranhas”, “deviam se preservar”, “não deixar serem filmadas”, “assumir as consequências dos atos”, etc. Cada comentário mais estúpido e hipócrita que o outro. É muito fácil dizer isso quando se é homem e se vive em uma sociedade falocêntrica. O garoto que ficou com Patrícia, que já tinha fama de gostosão, passou a ser O Pica das Galáxias. Ela, a meretriz.



As mulheres lutaram tanto para terem os mesmos direitos que os homens e, ao reproduzirem esses discursos, voltam ao paleolítico. Como assim ela deveria assumir as consequências dos próprios atos? Quem, aos deze-poucos anos, assume consequência de alguma coisa (até a maioridade penal é 18 anos)? Adolescentes erram, e é para isso que serve a adolescência. O erro, no entanto, não está na Patrícia, que registrou em papel o que tinha feito, não está na Giana ou na Júlia, que se deixaram filmar. Está em quem expôs.



Não satisfeito em assistir os vídeos, o público (homens e mulheres) ainda deixa comentários, para fazê-las – elas, as meninas, que sempre acabam como as vítimas – se sentirem piores. Elas são as piranhas, as periguetes, tiveram pais que não deram educação... Eles, os que filmaram e divulgaram, passam despercebidos. É como se cada um desses casos fosse uma releitura do pecado original: Adão só comeu a maçã porque Eva ofereceu.



Tem algo de errado nessa sociedade. Fazer sexo é antigo. Registrar, em papel ou em vídeo, também. Infelizmente, nem todo mundo respeita a privacidade e deixa entre quatro paredes o que ali foi feito. É preciso divulgar, mostrar o que a mulher fez de errado e o que o homem fez de certo. Denise Rocha, ex-assessora parlamentar, virou o Furacão da CPI depois de ter um vídeo de sexo publicado na web. Atores globais, ex-BBBs e até atletas têm vídeos aí, rolando na web, para quem quiser ver. Ninguém criticou – aliás, só elogios.



Não, não estou aqui sendo femininista ou criticando o machismo. Só mostrando as medidas que são dadas a pesos diferentes. Estou aqui por menos hipocrisia: pelas vezes que ouvi meninas da minha escola, que eu sabia que faziam coisas semelhantes ou “mais profundas”, rindo de Patrícia; pelos caras que a apelidaram, mas fariam qualquer coisa para transar com ela. Pela incompetência do adulto que expôs a X.. Por quem, ao criticar e ofender adolescentes, as deixaram vulneráveis e infelizes, ao ponto de se matarem.



Menos, meu povo, menos. Cada um sabe onde seu calo aperta e o melhor jeito de gozar. Criticar e rir da desgraça e do gozo alheios não expia nossos pecados nem atenua nossos problemas. Só nos torna cada vez mais hipócritas.


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